O assobio do amolador

Hoje de manhã passou um amolador pela minha rua. Ouvi o assobio, tão característico, e corri à janela como se corresse para a minha infância. 
Fiquei a observá-lo. Era um velhote com um velho casaco aos quadrados e um boné na cabeça. Caminhava lentamente, a bicicleta pela mão, um caixotinho com ferramentas precariamente preso na parte de trás. De vez em quando, levava à boca a pequena gaita de beiços e soltava o seu assobio. Fazia variações: umas vezes uns sons mais curtos, outras vezes sons mais longos, mais pungentes. Percorreu a rua toda, e eu, perdida no tempo, à janela, a observá-lo. Fez-me lembrar a minha infância, quando ainda morava na Penha de França, antes de mudar para Benfica. Havia muitos vendedores de rua, homens e mulheres que passavam com os seus carrinhos, onde vendiam as mais variadas coisas. Cada um tinha o seu modo característico de se anunciar, o seu pregão. E nós nem precisavamos de perceber as palavras, só pela melodia e entoação do pregão já percebíamos se era a mulher do peixe ou a da fava-rica. Ou o amolador. Melodias de uma Lisboa que já não existe, inevitavelmente engolida pelo progresso, de uma Lisboa já na altura uma tanto desfasada no tempo.
O amolador percorreu a rua até ao fim, atravessou, virou a esquina, entrou noutra rua. Nem uma pessoa se chegou para afiar uma faca ou uma tesoura, ou ao menos para puxar dois dedos de conversa. Será que hoje ainda há lugar para estas actividades ou já não se afiam tesouras? Será que ainda há espaço para o assobio do amolador?
Quem se lembra dele?

Comentários

  1. Se me lembro !...
    Claro que os tempos são outros nas cidades metrópole.
    Daí todos terem pressa (não sei para quê...) ou não se confiar como antigamente.
    E é desta forma que as tradições mais puristas se vão perdendo.
    Fica aqui uma chamada de atenção para todos nós.

    Um obrigado, TERESA.

    Um beijo.

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  2. Há uns anos fiz um post sobre o amolador e disse que ele era um poema em movimento!
    Torno a repeti-lo a propósito do que dizes, de forma muito mais bonita do que eu... :-))

    Abraço

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  3. Que lindo! Aqui na minha rua de vez em quando passa um.Mas os fregueses dele são jurássicos e dentro em breve, não estarão mais, nem ele... beijos,chica

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  4. Olha, do que a Teresa foi falar!
    Claro que me lembro dos amoladores.
    Conto:
    Quando vim para Portugal fomos viver para uma quinta de família, ali para onde era a Charneca do Lumiar (saudades!!!). Tempos depois vendeu-se a quinta e comprei uma casa da Rua da Costa do Castelo, em Lisboa, onde ficámos uns anos até o bulício da grande cidade (por altura dos santos populares era um horror de barulho pela rua)nos levar a procurar a bela Região do Oeste onde passámos a viver.
    Vem isto a propósito de lhe dizer que foi na Costa do Castelo que conheci um amolador, coisa que eu nem imaginava que existisse! Em Luanda não se conhecia tal actividade ou, pelo menos, ela não nos assobiava à porta. Ninguém curava, aliás, de afiar uma faca ou uma tesoura. Quando deixavam de cortar, comprovam-se outras.
    Um dia, esperei pelo amolador. Logo que o vi com o carrinho estacionado ao lado de uma pequena mercearia que lá havia, fui ter com ele de tesoura e facas na mão. Fiquei, deliciado, a vê-lo dar ao pedal para girar a roda amoladora, por ela passando facas e tesoura, dando-lhes o fio para o corte certo. Mas, o "meu" amolador também consertava, com mestria, qualquer guarda-chuva e tachos e panelas de alumínio! E dei comigo a pensar: nesta terra há grandes remédios para pequenos males!
    Como era bonita e simples a vida naqueles tempos!
    Abraço

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  5. Eu lembro!!
    Afinal nasci e cresci praticamente numa aldeia que se tornou, de repente, cidade!Mas apesar disso ainda existem, por vezes ainda os vejo passar.
    Bjs Teresa

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  6. Afinal, ainda nos lembramos do amolador. Ainda bem, enquanto nos recordarmos e reconhecermos o seu assobio, ele não morre de todo.

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  7. Eu chamava a estes homens funileiros, até porque não se limitavam a amolar facas e tesouras, também arranjavam varetas de guarda-chuvas e concertavam tachos furados (antes de panelas silampos e afins). Ainda bem há pouco tempo ouvi um na minha rua e tal como tu fiquei à janela a ouvir aquele triste assobio, que dizia o povo ser sinal de chuva...

    Será que em tempos de crise eles voltam?

    Beijocas!

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  8. Aqui, de vez em quando aparece um e já me tem afiado uma faca ou outra...

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  9. Quem não se lembra do amolador.
    Se há nostalgia e memória auditiva forte é a do amolador e de um conjunto de crenças à volta do som que produz para se anunciar.

    Bjs.

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  10. Oh, não quero associar o som do assobio do amolador a um sinal de crise, embora perceba bem o que quer dizer a Teté. Prefiro continuar a ouvi-lo com nostalgia e a associá-lo ao poema em movimento que evocava a Rosa dos Ventos.

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  11. Tanto a dizer sobre os "amoladores"... trazem, sem dúvida, uma suave e agradável nostalgia... qual Rosa dos Ventos

    "Quando meus lábios beijam a sua nuca,
    e as minhas mãos passeiam em suas curvas...
    Sou lua ondulando o mar.
    Quando me aconchego com ternura,
    seu coração dispara,
    seus olhos abrem e fecham em doces delírios...
    Neste momento,
    você é Rosa dos Ventos,
    pétalas abertas a guiar-me em suas entranhas,
    numa dança de gostosas e atrevidas fantasias,
    desenhando ritmadas geografias
    de deliciosos espasmos de amor."

    Roberto Passos do Amaral Pereira

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  12. Lembro-me muito bem do amolador que percorria a minha rua de forma pachorrenta, nos tempos da minha infância tripeira. Quando ele se anunciava, dizia-se que vinha chuva no dia seguinte.
    Há tempos (cerca de dois anos) começou a aparecer um amolador no bairro onde moro. Estava um dia lindíssimo e pensei logo. Mau! Amanhã vai chover? E não é que choveu mesmo?

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